quarta-feira, 1 de junho de 2011

Carta aos estudantes de uma professora grevista

Meus queridos alunos,

Infelizmente, mesmo a greve dos professores tendo chegado ao fim, não tenho como estar hoje com vocês. O motivo é o agravamento de saúde de meu pai, que acaba de ser hospitalizado. Ele tem artrose (procurem no dicionário que raio é isso) e teve uma crise aguda, não conseguindo caminhar. Ficou então hospitalizado para fazer exames e aguardar enquanto estabiliza o quadro.
Desta forma estou eu aqui –exausta depois de ter ficado um dia inteiro no hospital para conseguir a baixa - me havendo com a necessidade de bolar uma tarefa para vocês fazerem, uma tarefa que não seja cretina, de preferência.
Isso porque eu sei que vocês estavam ansiosos para retornarem às aulas (que ironia, hein?), preocupados com o futuro que os espera, com as vagas nos melhores colégios de Ensino Médio e – principalmente – com as férias de verão que se iniciam antes da primeira garfada no peru de Natal.
Quem não gosta de um merecido descanso após o dever cumprido?
Sei também que esse papo de greve deixou vocês um tanto “bolados” ( gostou Leozinho?). “Pá, as profe ganham tri bem e ainda tão fazendo greve! Só querem dinheiro mesmo!” Mesmo que nem todos pensaram isso, muitos sentiram algo parecido na bordinha do pensamento; e, muitos dos que pensaram, acabaram falando. Por isso que eu posso agora, nesta carta, reproduzir-lhes as falas.
Mas o fato é que não os culpo. Quer dizer, não culpo quem pensa a frase que coloquei acima entre aspas de pensar assim. Porque rolou solto um papo que as professoras do município ganham tri bem, uns 4000 por mês e isso é muito mais do que ganha a maioria dos pais dos alunos que frequentam as escolas municipais. E é realmente irônico pensar que elas ( quer dizer, nós, as professoras) podem se dar ao luxo de fazer greve ganhando já essa dinheirama, enquanto os nossos pais, o mais das vezes, ganham uma mixaria e se fizerem greve tão no olho da rua no dia seguinte. Além disso, as professoras, como de resto todos os servidores públicos, fazem isso mesmo que o nome diz - servem ao público - e quando eles fazem greve fica parecendo que eles querem prejudicar a população e, consequentemente, a população possa ficar contra eles.
É por isso tudo que eu decidi que o assunto desta minha carta seria uma conversa franca com meus alunos sobre as causas, os motivos, as circunstâncias... e a importância da greve. E decidi também que, dentro deste texto que é uma carta, haveria outros textos, de vários tipos, vários lugares e vários autores, me ajudando a esclarecer as coisas. Então lá vai.

1º texto importante pra gente conhecer sobre greve:
Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.
(Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Título II – Dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, capítulo II – Dos direitos sociais)

Pois é, pessoal, o primeiro texto que se imiscui (não me xinguem, olhem no dicionário o que é imiscuir) no meio desta carta é o Artigo 9º da Constituição Brasileira. Agora eu pergunto: alguém nesta sala conhece o que tá escrito na Constituição do Brasil? Sabe pra que serve a Constituição de um país? Não adianta copiar do livro didático, tem que dizer do jeito que entende! (Neste momento eu acho que vocês estarão perguntando pra professora que vai aplicar a tarefa: é pra responder por escrito? É pra entregar? Vale nota? Ai, que saco! Parem de encher e continuem a ler a carta, faz favor?!)
Outra perguntinha bem sem vergonha: vocês por acaso não acham que é cedo para conhecer textos tipo a Constituição do Brasil, acham? Não acham que é coisa de adultos, de velhos, de advogados, acham? ( ai, tô com medinho da resposta...) Pois eu vou dizer uma coisa: tem muito gente grandona no Brasil que torce para os jovens acharem que política e leis é coisa de adulto velho. Porque assim eles crescem sem conhecer os seus direitos fundamentais de cidadão e, quando se dão conta, é tarde demais: já estão atolados trabalhando 12 horas num emprego sem pagamento de horas extras, sem insalubridade ( olha o dicionário, Mané!), muitas vezes sem carteira assinada, sem 13º, gastando boa parte do seu dia dependurado num corredor de ônibus ( sem cinto de segurança e a EPTC não multa, como é que pode?!), cheios de filhos e sem nenhunzinho plano de saúde (porque serviço público de saúde é uma piada, não é? O que vocês acham?) E esse cara que cresceu desse jeito – se achando esperto, mas desconhecendo muito coisa importante sobre os seus direitos, fica desse jeito justamente por conta deste desconhecimento e da consequente resignação (dicionário, faz favor) que toma conta dele. Ele acha que a vida é assim mesmo, que tem uns que nasceram pra mandar, outros pra obedecer, que a vida nunca vai mudar, que as coisas são como são, que pau que nasce torto não endireita nunca (é um ditado popular, não malicia, vê se interpreta direito, pô!)
Como eu sou professora, eu não acredito nisso. Aliás, não acredito nisso e não quero isso nem pra mim, nem pro meu filho, nem pros meus alunos, nem pra ninguém que eu amo. E nem pra nenhum brasileiro, droga!
Quer dizer, eu, como professora, acredito que ler, se informar, saber das coisas, pesquisar, correr atrás, ficar ligado... faz a diferença. Acredito que as coisas que a gente lê faz muita diferença com relação ao tipo de pessoa que a gente pode ser tornar. E acredito que lei a gente tem que conhecer pra não ser passado pra trás. E das leis, a maior de todas, é a constituição de um país.
Como vocês podem ver, voltando alguns parágrafos ( não choraminga: volta alguns parágrafos!), o artigo 9º da constituição explica várias coisas. Primeiro diz que fazer greve é um direito (e não uma vagabundagem); que são os trabalhadores que decidem quando fazer a greve e pelo que querem lutar através dela.
Mas o artigo 9º tem também dois parágrafos (aquele sinalzinho esquisito - § - quer dizer parágrafo num texto legal. Mais uma coisinha: texto legal não é só texto tri bom, mas também texto que apresenta uma lei: adjetivo “legal” relativo ao substantivo “lei”). O primeiro parágrafo vai avisando que a mesma lei que avisa que greve é um direito, avisa também que tem um tipo de serviços que não pode nunca deixar de ser prestado à população: são os serviços essenciais, que atendem as necessidades inadiáveis da população. Ora, necessidade inadiável é uma necessidade que não se pode adiar. Que tipo de necessidade vocês acham que não se pode adiar? Vou dar uma dica: por exemplo, as professoras aqui da escola fizeram greve, mas depois vão poder recuperar as aulas num outro momento. Isso quer dizer que, mesmo a aula sendo tão importante, ela pode der adiada para mais tarde. Ninguém morre por causa disso (embora todos fiquem bastante aborrecidos). Mas, será que todos os serviços públicos são assim? Quais que vocês acham que são inadiáveis? (Neste momento eu acharia bem legal se vocês estivessem em dupla e conversassem um pouco sobre isso e anotassem as suas conclusões no caderno...)
Já o segundo parágrafo do artigo 9º é bem vago: diz que quem cometer abusos com relação a esse direito vai ficar sujeito às penas desta mesma lei que o concedeu... Vou explicar porque que eu acho que ele é vago: porque não explica quando é que se considera que alguém está abusando do direito de greve. Quer dizer, aí a lei abre uma brecha para interpretações as mais variadas. Dependendo do tipo de governo que se tem, vai-se entender uma coisa ou outra!
Aqui em Porto Alegre, por exemplo, o secretário encarregado das negociações com o nosso sindicato (vocês sabem pra que serve um sindicato? Vão pesquisar!) desde o início da greve nos ameaçava de cortar o ponto (quer dizer, descontar o salário). E sempre o sindicato redarguia (dicionário de novo...): o direito à greve é garantido pela constituição! Mesmo assim, as diretoras tiveram que marcar uma audiência com a Secretária de Educação para esclarecer que papo era aquele de ameaça e coisa e tal. E até agora, no finalzinho, quando as duas partes meio que já tinham concordado com os índices e a greve estava encaminhando-se para terminar, no Jornal do Almoço de ontem ( dia 30/05), quando a apresentadora perguntou “mas afinal, os servidores terão os seus pontos cortados, afinal de contas?”, ele ainda continuou em tom de ameaça: “olha, se pararem agora, tudo bem, serão perdoados” (pensa que é Jesus!), dando a entender que se o pessoal continuasse em greve, a coisa ia feder.
O que isto mostra, meus queridos?
Em primeiro lugar que, só porque alguma coisa está escrita na constituição não quer dizer que a gente não tenha que lutar por ela todo dia, a cada novo dia. Vocês já devem ter ouvido os pais de vocês falar coisas desse tipo: matar um leão por dia, não esmorecer jamais. Porque uma constituição que foi criada em 1988 é ainda muito nova e os vícios da humanidade muito antigos! Então ela não é um texto que conta uma coisa que já aconteceu (como os relatos de memórias ou as notícias). Não: ela é uma espécie de profissão de fé, de promessa daquilo que a gente quer construir daqui pra diante, de como a gente pensa que as coisas devam ser daqui pra frente. Então as pessoas que se reuniram em 1988 pra escrever o conjunto de leis que iria regular o funcionamento do país inteiro achou que devia ser deste jeito e não de outro. Não pensem que foi fácil, não pensem que não houve disputas, não pensem que não houve desilusões. Mas ela tá aí e, acreditem, é muuuuito melhor do que as anteriores.
Por isso, meus amadinhos, eu queria muito que vocês pesquisassem e me dissessem o seguinte:
Que outros direitos fundamentais do cidadão a Constituição Brasileira de 1988 assegura?
Que outros direitos sociais – além da greve – ela assegura?
Quais desses vocês acham que já são cumpridos de fato e quais ainda não?
Isso é um tema, meus queridos!
Gostaria muito de receber uma carta bacana de vocês como resposta a esta. Vocês decidam o que vale a pena escrever, depois de ler isso tudo o que eu escrevi. Mas por favor, não me venham com aquela conversa insuportável de “quantas linhas”. Vejam como eu me puxei e não me façam pegar nojo, tá certo?
Amor, I Love you!
Beijo!
Ana Zatt


PS: (PS quer dizer post scriptum, citação em latim que explica que, apesar de já ter me despedido, lembrei de uma coisa pra dizer depois do escrito) Eu disse no 5º parágrafo desta minha carta que ia botar outros textos no meio, mas o papo sobre a Constituição acabou tomando todo o meu tempo. Não me arrependo. Vou então colocar uma outra citação só pra não ficar feio:

“Lutar com palavras é a luta mais vã.
No entanto lutamos, mal rompe a manhã”
Carlos Drummond de Andrade


Ana Zatt
Maio/2011 - outono
Porto Alegre

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